A DAMA DA DANÇA











Há momentos na vida em que somos tomados por lembranças muito doces e uma enorme gratidão nos invade. É a emoção de voltar a certos lugares que mais do que importantes, foram determinantes em nossa vida. Lembrar das pessoas que ali estavam, dos momentos passados juntos, de tantas histórias que se cruzaram e de tudo que frutificou daqueles tempos, foi uma enorme surpresa para mim. Sim, porque sou destas pessoas desapegadas do passado, que nunca tira fotos,  desmemoriada para datas, que adora se desfazer de coisas guardadas e que  às vezes vê um filme, para só no final lembrar que já o tinha visto.

Mas hoje, estive no Casarão da Cristóvão, antiga Escola de Bailados Clássicos Tony Seitz Petzhold, agora um Centro Cultural dirigido pela neta de Dona Tony, como carinhosamente a chamávamos. Estive mais precisamente ensaiando com os bailarinos da Porto Alegre Cia de Dança, no espaço batizado Sala Walter Árias.

Primeiro, claro, lembrei de Dona Tony, sempre na escola, uma mulher esguia, cheia de energia, realmente a alma daquele lugar.  Era uma encantadora de pessoas, adorava conversar, contar histórias e para mim, era uma figura tão interessante que até hoje tenho em mente sua imagem elegante, sentada, com as longas pernas cruzadas, fumando em sua piteira, com aqueles olhos azuis brilhando.
Já havia ouvido falar dela porque Seu Rolla havia iniciado na dança por suas mãos. Quando finalmente tomei coragem para buscar suas aulas, ela me recebeu em sua escola de braços abertos e logo no primeiro dia disse: tu vais fazer aulas com Walter, mas antes vou te preparar para isso. Essa preparação durou dois anos e foi transformadora para mim. Ela era uma Mestra, orientava seus pupilos exalando seu amor pela dança e suas aulas eram repletas de divagações e conversas que enriqueciam o aprendizado técnico. A preparação só não foi mais longa porque Dona Tony praticamente me expulsou de sua classe. Ela sabia que seria e foi uma mudança brutal, mas necessária.

Então, nesta sala do térreo que hoje reformada tem ares mais modernos, passei a fazer aulas e ensaiar sob o comando de Walter Árias, um bailarino uruguaio que, chegando a Porto Alegre, havia sido acolhido por Dona Tony. Um artista de imenso talento, que tinha um gênio quase impossível, uma didática bastante austera para um professor, mas que nos passava apaixonadamente toda sua experiência de bailarino profissional.  E assim, na década de 80, nós, formadores do então Grupo Phoenix, fanáticos por dança, aspirantes a profissão de bailarino, sem pensar em cachês ou sequer imaginar que poderia ser de outra forma, trabalhávamos todas as tardes, diariamente, felizes, absorvendo tudo que podíamos e sempre contando com o olhar protetor e delicado de Dona Tony.
Foram anos dourados, de aprendizagem, de preparação, de convivência, onde aprendemos a exercitar o amor pela dança com comprometimento, paixão, dedicação e claro, muito divertimento. Walter era exigente e o Grupo, depois Ballet  Phoenix dançava ballet clássico. Após cada aula, ensaiávamos muito e ainda assim, muitas vezes íamos ao Casarão nos finais de semana ou tarde da noite, só pelo simples prazer de praticar um pouco mais.

No meu caso, aqueles anos passados no Casarão da Cristóvão me deram a confiança e energia para buscar voos maiores. Quando saí dali comecei um ciclo de viagens que me levou a lugares incríveis e experiências únicas no mundo da dança.

Fico feliz de ver o Casarão funcionando, hoje Casa Cultural Tony Petzhold, agora sob a batuta de Gucha, Thais Petzhold, que na época de minhas lembranças era uma criança de coque e pernas longas como a avó; e andava sempre na Escola, com uma amiguinha inseparável que já não recordo o nome, as duas parecendo adoráveis miniaturas de bailarinas russas.

Fico feliz de voltar a este lugar com meu grupo de intrépidos bailarinos.  Jovens que dançam na Porto Alegre Cia de Dança muito mais focados no prazer de dançar do que pelo retorno financeiro que a profissão possa oferecer. São novos artistas que atuam nos mesmos moldes antigos de Dona Tony e Walter, fazem aula e ensaiam  todos os dias, são movidos pela paixão e são a mostra viva de que o trabalho comprometido traz resultados.

Sim, sou desmemoriada, mas felizmente o coração não mente e o Casarão da Cristóvão faz parte destas carinhosas lembranças, que mesmo esquecidas, estão guardadas. Vivências que ressurgem às vezes com a força de uma Phoenix, para mostrar que o amor pela dança em Porto Alegre teve boas sementes e segue florescendo, mesmo que aparentemente das cinzas.

2 comentários:

  1. Lindo texto Tânia! Obrigada por aquecer o coração e a memória da cidade nesta tarde fria de inverno. Beijos, Tati Rosa

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  2. Fico feliz que uma pessoa com a tua trajetória escreva algo tão belo sobre a memória da nossa dança! Um forte abraço, Luciane Soares

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