RUMO AO DESCONHECIDO - IV

Minha primeira aula na escola foi de língua russa e estudamos as partes do corpo. Havia uma professora que ensinava francês no currículo normal da escola e foi designada para me dar aulas diárias particulares de idioma russo - Ludmila Anatolia. Ela tinha uma voz adorável que me fazia levitar nas aulas. 

Todas minhas necessidades eram supridas. Já nos primeiros dias em Kiev, me levaram a uma loja de roupas por que eu tinha direito a comprar roupas e botas para o frio e na verdade, os sapatos que eu havia levado do Brasil se haviam aberto como de papel com toda aquela neve. Eu recebia uma ajuda de custo em rublos para me dedicar aos estudos, além de claro, não pagar por absolutamente nada na escola ou alojamento. As sapatilhas e sapatos de dança a caráter eram fornecidos e tudo que eu tinha a fazer era me adaptar a aquela nova cultura. Por este lado foi tudo muito fácil. Me sentia em casa lá. 

Ainda assim, não foi fácil ficar tanto tempo longe da família. Se hoje em dia podemos nos conectar com qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, em tempo real, na época ainda usávamos escrever cartas que enviávamos pelo correio e dependíamos de telefone para poder ouvir a voz de alguém querido. Eu, às vezes, ficava um dia inteiro na central telefônica (único lugar de onde podia ligar para o Brasil) e ao final não conseguia falar com ninguém. 
Tanto o mundo mudou desde aquela época... 

Tive a chance de conhecer e ter experiências em um país com um sistema político diferente e perceber o quanto isso modifica os valores e consequentemente a vida das pessoas. Era uma vida sem grandes confortos, mas sem este consumismo que nos é incutido de tal forma que sequer nos damos conta do quão desnecessário é e do quanto na verdade, torna nossa vida descartável. As pessoas frequentavam os espaços culturais e tinham discernimento crítico sobre o que viam, apreciavam seus artistas, conheciam em detalhe o acervo dos museus da cidade, sabiam suas peças de repertório preferidas e principalmente, incentivavam e respeitavam estudantes e aspirantes das artes. 

Naquele mundo havia uma certa aura de confiança e companheirismo, lembro dos russos como pessoas de espírito forte e alegre. Muito diretos e sem as máscaras sociais de quem confunde interação com superficialidade. Jamais diria que era um mundo perfeito, mas sem dúvida era mais solidário, mais caloroso, mais inspirador.
Para mim era um mundo novo que se apresentava em toda sua plenitude e o que mais pode desejar um artista do que mergulhar no desconhecido?

fotos: Vaslav Nijinski (Kiev, 12 de Março de 1889 — Londres, 8 de abril de 1950)

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